Curso de Química na Alameda Glette (1939-1965)

Autores: Viktoria Klara Lakatos Osorio

Revisores: Marina Mayumi Yamashita

Editores Associados: Leila Cardoso Teruya

Última atualização: 28/05/2023

O curso de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), criada em 1934 pelo decreto de fundação da USP, foi ministrado de 1935 a 1938 no prédio da Faculdade de Medicina, num espaço cedido em caráter temporário. No início de janeiro de 1939, a subseção de Química da FFCL, responsável pelo curso, foi transferida para o prédio construído no ano anterior junto a um palacete, no número 463 da Alameda Glette, onde permaneceu até dezembro de 1965. Em 1942, a subseção de Química passou a se denominar Departamento de Química, denominação que perdurou até a sua incorporação ao Instituto de Química, em 1970.

O Palacete Jorge Street

O palacete, construído em fins do século XIX num terreno de 2.685 m2, na esquina da Alameda Glette com a Rua dos Guaianazes, em São Paulo, foi adquirido em 1916 por Jorge Street, médico e industrial carioca, que nele residiu com a sua família por mais de uma década. Nos anos 1920, após uma reforma projetada pelo arquiteto Hippolyto Gustavo Pujol Filho, o palacete mudou completamente de aspecto, ganhando em luxo e refinamento. Durante a crise mundial de 1929, o imóvel, hipotecado, passou a pertencer à Companhia de Seguros Sul América. No segundo semestre de 1937 foi comprado pelo Governo Estadual para receber setores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, até então instalados em locais provisórios. O palacete foi a primeira sede própria da FFCL.

O palacete e seus anexos, após adaptações, alojaram a administração, a biblioteca e as cadeiras humanísticas da FFCL por um curto período, o primeiro semestre de 1938, após o qual esses setores foram transferidos para o prédio da Escola Normal Caetano de Campos, na Praça da República, liberando o espaço no palacete para as cadeiras da subseção de Ciências Naturais. Durante o ano de 1938 foi construído um prédio para a subseção de Química, na parte do terreno junto ao portão de acesso de pedestres, na Alameda Glette. O local abrigou os cursos de História Natural, de Química e de Geologia e também a disciplina de Psicologia Experimental, até a transferência desses setores para a Cidade Universitária, ocorrida gradativamente entre os anos de 1955 e 1969.

O novo prédio da Química e as primeiras teses de doutorado

Com o seu primeiro prédio próprio, um edifício de três pavimentos, a Química passou a contar com três laboratórios de ensino com capacidade para 25 alunos cada, dois laboratórios de pesquisa, anexos para balanças e estufas, um depósito para drogas, uma biblioteca, um escritório, uma salinha para alojar um museu e um anfiteatro para 60 lugares. O anfiteatro foi usado nos anos seguintes também por outras seções da Faculdade e, em muitas ocasiões, para conferências.

O corpo docente era então constituído pelos professores alemães Heinrich Rheinboldt e Heinrich Hauptmann e seus assistentes Jandyra França, Simão Mathias e Paschoal Senise, que se formaram na primeira turma da escola, em 1937. A pequena equipe contava, ainda, com os assistentes técnicos Herbert Stettiner e Elly Bauer.

No novo prédio, os jovens assistentes tiveram condições para desenvolver os seus trabalhos de doutorado e as três teses foram concluídas em fins de 1941. Embora inicialmente se pretendesse que Jandyra fosse a primeira a defender tese, programada para o início do ano letivo de 1942, Mathias, agraciado com uma bolsa da Fundação Rockfeller para se especializar em Físico-Química nos Estados Unidos, precisou antecipar a apresentação de sua tese. Foi necessário solicitar autorização especial para a defesa ocorrer fora do período letivo. Assim, em janeiro de 1942, durante a solenidade de formatura da turma de 1941 no Teatro Municipal, Simão Mathias recebeu do diretor Fernando de Azevedo o seu diploma de Doutor, o primeiro doutoramento na FFCL. O seu orientador foi Heinrich Rheinboldt.

Retomadas as aulas em março de 1942, Jandyra apresentou a sua tese, no dia 23, sendo aprovada com nota 10,0. Foi a primeira mulher a se doutorar na USP. Constituíram a banca examinadora Heinrich Hauptmann (orientador), Heinrich Rheinboldt, Paulo Sawaya, Dorival Fonseca Ribeiro e Henrique Tastaldi.

Logo a seguir, a 17 de abril, Paschoal Senise também defendeu tese, perante uma banca composta por Heinrich Rheinboldt (orientador), Heinrich Hauptmann, André Dreyfus, Mario Domingues e Milton Estanislau do Amaral, sendo também aprovado com nota 10,0.

Ainda nesse ano de 1942, a 14 de novembro, ocorreu o doutoramento de Francisco Antonio Berti, graduado em 1939 e que não estava ligado ao corpo docente. A comissão julgadora foi formada por Heinrich Rheinboldt (orientador), Heinrich Hauptmann, Felix Rawistscher, Henrique Tastaldi e Paulo Sawaya.

Criação da Associação de Ex-Alunos de Química (1941)

Em junho de 1941, realizou-se a assembleia geral de fundação da Associação dos Ex-Alunos de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. O número de ex-alunos ainda era pequeno, não chegava a 30. A primeira diretoria eleita, com mandato de dois anos, era constituída por Simão Mathias, presidente, Jandyra França, secretária e Pedro Santini, tesoureiro. Entre as atividades desenvolvidas com bastante regularidade pela Associação, constava a concessão de bolsas a alunos de graduação, através do “Fundo para Bolsas de Estudo” e a publicação, com recursos angariados pelo “Fundo para Publicações Científicas”, da revista Selecta Chimica, destinada principalmente à divulgação de trabalhos de caráter monográfico, com colaboração nacional e estrangeira. A Selecta Chimica teve periodicidade inicialmente semestral e depois anual. Publicada desde 1944, o seu último fascículo, reunindo os números 23 e 24, saiu em 1965.

Posteriormente, com a extinção da FFCL e a criação do Instituto de Química, a Associação passou a representar os químicos formados pela USP, denominando-se Associação dos Ex-Alunos de Química da USP e abrangendo também os estudantes de pós-graduação.

Mais informações disponíveis em http://www2.iq.usp.br/exalunos/.

Ampliação do prédio e do corpo docente

A mudança da Química para o seu prédio próprio propiciou um rápido crescimento e, em pouco tempo, o espaço se tornaria insuficiente. Em 1944-1945, com o apoio do Reitor Jorge Americano, foi construído um anexo de três pavimentos.

A ala nova foi edificada justapondo-se ao prédio original, com comunicação interna, de modo que os dois edifícios pareciam um só. Com a ampliação, foi possível instalar novos laboratórios e escritórios nos dois primeiros pavimentos, uma biblioteca maior no terceiro pavimento e um depósito para almoxarifado no porão.

Pouco mais tarde, foi construído um pequeno anexo de um só pavimento para a oficina hialotécnica, adjacente à sala prevista para abrigar o museu, projeto idealizado pelo professor Rheinboldt que nunca chegou a se concretizar. Ao invés do museu foi ali instalado nessa época o laboratório de microanálise elementar. O recinto da oficina hialotécnica, por sua vez, seria anos depois a sede do Centro de Estudos Químicos Heinrich Rheinboldt, CEQHR, agremiação fundada pelos estudantes de Química.

Na década de 1940, foi possível a contratação de novos assistentes para diversas cadeiras e o corpo docente passou a contar com Ernesto Giesbrecht, Madeleine Perrier, Marco Antonio Guglielmo Cecchini, Marcello de Moura Campos, Lucy Lacerda Nazario, Hanna Rothschild, Blanka Wladislaw e Astrea Menucci Giesbrecht.

No início de seu funcionamento, a única modalidade de diploma concedida pela FFCL era a de Licenciado. A partir de 1942, foram também emitidos diplomas de Bacharel. Em 1946, uma reforma alterou a duração do curso de três para quatro anos, incluindo também um curso de especialização com disciplinas de Química Preparativa e Química Industrial, que conferia o diploma de Bacharel com Atribuições Tecnológicas.

Em 05 de dezembro de 1955, o professor Rheinboldt faleceu repentinamente e o professor Hauptmann o sucedeu no comando do Departamento. O quadro de assistentes também passou por mudanças. Alguns docentes se desligaram, entre os quais, Jandyra, Marco Antonio, Marcello, Lucy, Hanna e Astrea. Na década de 1950, ingressaram Giuseppe Cilento, Luiz Roberto de Moraes Pitombo, Eurico de Carvalho Filho, Renato Giovanni Cecchini, Geraldo Vicentini, Lilia Rosaria Sant’Agostino, Aurora Catharina Giora Albanese e Eduardo Fausto de Almeida Neves. Atuaram também, por curtos períodos, Marina Rezende Fornasaro e Mario Renato Krausz.

À medida que o Departamento se desenvolvia, era cada vez mais prejudicado pelas limitações de espaço e pela precariedade das instalações, perdendo várias oportunidades de crescimento científico. O professor Hauptmann, na direção, empenhou-se em conseguir uma sede na Cidade Universitária, que possibilitasse a expansão, o aumento do número de vagas e a aquisição de equipamentos para a abertura de campos de pesquisa não explorados. Foi ele o mentor e o articulador do projeto de construção dos prédios que vieram a se chamar Conjunto das Químicas, destinados a reunir os diversos setores da Química Básica das escolas superiores da USP e onde se encontra atualmente instalado o Instituto de Química. Esse projeto era a pauta diária de Hauptmann, Simão Mathias, Paschoal Senise e Ernesto Giesbrecht. Em 21 de julho de 1960, a escola perdia o professor Hauptmann e coube a Simão Mathias, que assumiu a coordenação do Departamento, dar prosseguimento a essa tarefa.

Antes da mudança para a Cidade Universitária, o corpo docente ainda recebeu o reforço dos instrutores Divo Leonardo Saniotto, Klauss Zinner, Oswaldo Espírito Santo Godinho, Hans Viertler, Osvaldo Antonio Serra, Shirley Schreier, Fernando Galembeck e Francisco de Paula Camargo.

Criação da agremiação dos alunos de Química, o CEQHR (1960)

Os alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras tinham uma representação estudantil bastante atuante, o Grêmio. A sede do Grêmio acompanhou as várias andanças das cadeiras humanísticas da FFCL, ou seja, foi inicialmente instalado na Faculdade de Medicina (até junho de 1937), ficou durante o 2º semestre de 1937 em uma mansão onde é atualmente a Biblioteca Mario de Andrade, passou o 1o semestre de 1938 no prédio próprio da FFCL na Alameda Glette, depois foi transferido para o prédio da Escola Normal Caetano de Campos (até 1949) e em seguida para a Rua Maria Antonia. Os vários departamentos da FFCL se encontravam, porém, em locais dispersos e isso dificultava a ligação com o Grêmio. Procurando contar com uma agremiação mais atuante em relação aos assuntos específicos do seu curso, os alunos de Química resolveram fundar, em 1960, o Centro de Estudos Químicos Heinrich Rheinboldt, CEQHR. O primeiro presidente foi Osvaldo Antonio Serra, que então cursava o segundo ano. Sucedeu-o na presidência, em 1961, o seu colega de turma, Hans Viertler.

O CEQHR permaneceu como tal mesmo após a criação do Instituto de Química. Atuando como Centro Acadêmico, continuou a ser um órgão de confraternização dos estudantes e de interação com o corpo docente.

A Biblioteca da Química se instala no Palacete Street

Em meados de 1959, a cadeira de Biologia Geral do Departamento de História Natural, que funcionava no último andar, o antigo sótão, do palacete, mudou-se para a Cidade Universitária. A biblioteca, a secretaria e o gabinete do diretor do Departamento de Química foram transferidos em 1960 para o espaço liberado. O acesso se dava pela parte dos fundos do prédio, usando uma escada estreita e escura ou um pequeno elevador com porta pantográfica, que costumava parar entre os andares. O palacete já era então lendário e corriam rumores de fantasmas assombrando o local, como narra, em sua crônica Um Fantasma na Glette?, o químico Sergio Massaro.

No início de 1966, o Departamento de Química também se transferiu para a Cidade Universitária. A reforma universitária de 1969 criou os Institutos Básicos e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), extinguindo a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em 1970, o Departamento de Química da FFCL passou a integrar o Instituto de Química.

A Figueira da Glette

No começo dos anos 1970, o Conselho Universitário da USP aprovou a proposta de alienação da propriedade da Alameda Glette, que ficou alguns anos à venda. A escritura de compra e venda tem a data de 06/05/1974. O palacete e seus anexos foram demolidos e atualmente funciona no terreno um estacionamento para carros.

A única recordação dos tempos da faculdade, um símbolo para os que conviveram naquele local e são chamados até hoje de gletteanos, é uma figueira centenária, a Figueira da Glette. Em 22 de dezembro de 2007, foi aberto o processo de tombamento municipal da Figueira pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).

 

 

Referências

CAMPOS, E.S. História da Universidade de São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1954. p.228-251.

MASSARO, S. Um Fantasma na Glette??? e A Mansão dos Street numa Rua chamada Alameda. In: ADES, C.; SABADINI, A.A.Z.P.; VILELA, C.R.; CARVALHO, N.G.; OSORIO, V.K.L., orgs. A Glette, o Palacete e a Universidade de São Paulo. São Paulo: Centro de Memória do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2014. p.229-234.

MATHIAS, S. O Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras: os primeiros anos. Química Nova, v.7, n.4, p.191-197, 1984. 

NEVES, E.F.A. Professor Paschoal Senise: meio século de atividades na USP. Química Nova, v.10, n.4, p.304-311, 1987.

OSORIO, V.K.L. Alameda Glette, 463, sede do Curso de Química da Universidade de São Paulo no período 1939-1965. Química Nova, v.32, n.7, p.1975-1980, 2009.

OSORIO, V.K.L.; VILELA, C.R.; CARVALHO, N.G.; SABADINI, A.A.Z.P.; ADES, C. O Palacete Jorge Street: um marco da infância da USP que não foi tombado. In: ALFONSO-GOLDFARB, A.M.; FERRAZ, M.H.M.; BELTRAN, M.H.R.; SANTOS, A.P., orgs. Simão Mathias - cem anos: química e história da química no início do século XXI. São Paulo: EDIT-SBQ: PUC-SP, 2010. p.107-120.

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SENISE, P. Origem do Instituto de Química da USP: reminiscências e comentários. São Paulo: Instituto de Química da Universidade de São Paulo, 2006. p.35-69.